Ô, que beleza! Isso é uma alegria que Deus mandou pra esse lugar. Assim, mestre Raimundo Aniceto saudou o público no final da tarde de sábado, para a primeira apresentação no palco montado em frente à Igreja Matriz, novamente um dos destaques do Festival Jazz & Blues

Despertando diferentes interpretações, de prova do ecletismo atualmente possível em um evento do tipo, até uma tentativa de apropriação de um ícone da cultura popular, a participação dos Aniceto no festival no Maciço de Baturité foi recebida com unanimidade de comentários positivos e bastante entusiasmo pela platéia que transformou em arquibancada a escadaria da igreja. Arranjando até um lugarzinho pra dançar ao som das marchas, dos choros e baiões da tradicional Banda Cabaçal do município do Crato.

Ocasião celebrada, do palco, por mestre Raimundo, logo após a tradicional ´Marcha de chegada´. ´A gente já andou o Brasil quase todo. E quase em cima de casa a gente não conhecia um lugar tão bonito quanto Guaramiranga´, emendou, acabando de ganhar o público e passando a palavra ao zabumbeiro Adriano, para puxar o ´Baião trancelim´. Aí era só se deixar levar pela performance dos Aniceto, unindo as cores chamativas das fardas, a dança de inspiração na vida do campo e na observação dos animais, as ligeiras e agudas frases melódicas dos pífanos, os casos traduzidos em forma de música, a percussão do prato, da caixa e da zabumba - que teve de ser trocada logo nos primeiros números, quando afrouxou o couro. ´O rojão dos Irmãos Aniceto é pesado´, justificou Adriano, puxando ´Quando os índios dançam´, o ´baião solto´, para apresentação de cada integrante da bandinha, que, entre tantos outros motivos para tocar as memórias e a subjetividade de cada um, impressiona principalmente pela simplicidade. Nada a ver, ressalte-se, com ingenuidade; o grupo mostra uma apurada consciência do que o público dele espera e de como conduzir esse diálogo do palco.

Com o público da parte superior reclamando e a organização procurando acomodar sentada a platéia na parte inferior, para melhor visualização de todos, os Aniceto caíram no forró, lembrando Gonzagão com ´A vida do viajante´ e arrancando aplausos ao contar, em dança e música, a lida com os ´mariboni´ no trabalho na roça. ´Quando a gente tá na cultura, roçando o algodão, a gente encontra os marimboni. Eles têm a boca torta e não erram o olho do caboclo nem a pau´, comenta mestre Raimundo. Depois da luta das abelhas, Adriano comanda ´O cachorro, o caçador e a onça´. Com um arsenal de câmeras ao pé do palco, os Aniceto seguem com ´A dança do caboré´ e com um samba carnavalesco cantado por mestre Antônio, antes de contar a história de seu Severino Brabo, para mais fotografias dos irmãos na performance de mestre Raimundo com duas peixeiras.

Um forrozinho a mais e vêm as imitações do ´Casamento da cobra com o gavião´. ´Asa branca´ e ´A volta da asa branca´, assim como o ´Brasileirinho´ que viria depois, deixam clara a diferença de sotaque entre o pífano e a flauta convencional, enquanto ´A dança do sapo´ traz de volta a performance. Depois de números como o ´Choro-esquenta mulher´ e ´A briga do galo´, o encerramento vem com as marchinhas. ´Se nós for apresentar tudo que os Aniceto aprendeu, um ano é pouco´, diz mestre Raimundo, antes de deixar o palco com a marcha saideira. E o festival estava ainda só começando...

À vontade em Guaramiranga
De sorriso largo e prosa fácil, os Irmãos Aniceto pareceram, acima de tudo, estar se divertindo com a presença em Guaramiranga. Nada de acanhamento, nem da inadequação que se poderia supor a partir da distância entre os universos simbólicos do jazz e da cultura popular tradicional. Distribuindo a simpatia de sempre e aparentando a mesma destreza com que conduzem as apresentações da bandinha nas renovações de casas pelo Cariri, os irmãos se mostraram à vontade na cidade do Maciço de Baturité, nos momentos em que conviveram com outros músicos, passearam pela cidade, venderam seus pífanos e CDs, antecedendo a apresentação do fim de tarde de sábado, no palco montado em frente à Igreja Matriz.

Seu Raimundo, 73 anos, e seu Antônio Aniceto, 76, eram os mais animados. Com o grupo tendo chegado à cidade ainda na sexta-feira, os dois foram dormir cedo. ´Fiquei por aqui, conversei um pedaço. Botei uma camisa de frio, mas não sarou não. Tava frio mesmo´, brincou seu Raimundo, na descontração de um café-da-manhã recheado de casos, piadas e poemas de seu Antônio, presepeiro todo, com seus versos para as meninas, suas histórias da família famosa pelos muitos filhos e suas imitações de meninos danados e animais do sertão.

´Uma vez me perguntaram por que é que eu fecho tanto os olhos quando tô tocando. É que eu penso que to no céu´, contou, demonstrando o significado da bandinha, mantida de pai a filho em tradição secular do grupo de agricultores do Crato. Que chegaram a Guaramiranga dando conta da satisfação com as chuvas de começo de ano no Cariri. ´Choveu dez dias seguidos. Ou chovia de manhã, ou de tarde. A roça tá uma maravilha´, festejava mestre Raimundo.

A semeadura se estende à criação de novos temas musicais, como os que deverão formar o próximo disco do grupo - segundo os Aniceto, de colheita esperada para este ano. ´Já tá bem adiantado, já. Falta um pouquim pra completar. É bonzim, nós tem umas músicas até no jeito pra colocar´, comenta Raimundo, sem esconder o orgulho com as melodias. ´A gente cria e muitas outras bandas pegam pra fazer pra eles, pedem à gente pra usar´, conta. ´Quem faz nossas músicas tudo é a gente mesmo. É uma cultura que a gente tem. Às vezes a gente tá na roça, trabalhando, aí vem aquele sentido. A gente se lembra e depois resolve: ´Vamos tocar aquela´. Aí a gente toca e vai fazendo´, explica, citando temas reservados para o novo CD. ´Tem o ´Choro-esquenta mulher´, o ´Forró de pé-de-serra´, o ´Xote capim-puba´. Tem de tudo, choro, valsa. E tão pedindo muito que a gente bote mais uns forrozim no disco, que o povo gosta de brincar´, revela. Para Antonio emendar: ´Nós têm a veia poética. Dá pra fazer é mais´. 

A apresentação agendada com a Orquestra de Câmara Eleazar de Carvalho, a ser registrada em DVD com direção do cineasta carioca Sérgio Rezende, também é motivo de expectativa entre os irmãos. ´A gente fez da outra vez, e deu tudo bem. Leva um tempinho pra ajeitar, mas ninguém reclamou de nada, foi tudo direitinho. A gente se engraçou muito da orquestra´, conta Raimundo. ´Vamos ver dessa vez o que é que eles vão querer fazer. A nossa letra é fraca, não é como a deles, certo? Tem que falar tudo de ouvido´. A depender da naturalidade com que os Aniceto encararam a apresentação de sua banda cabaçal em um tal festival de jazz, tornar a dividir o palco com a orquestra será muito natural.

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