Fortaleza, uma cidade que comporta várias histórias, comemora hoje 282 anos

A sensação é de que o tempo não passa para o pesquisador cearense e musicólogo, Christiano Câmara, que juntamente com a mulher, Douvina, assiste, da porta da casa, localizada na Rua Baturité, número 162, no centro histórico de Fortaleza, o trem da história passar. Em consonância com o tempo atual, mas sem esquecer o bucolismo da Fortaleza que está guardada na memória do pesquisador, tenta alinhavar o presente com o passado que povoa não apenas o imaginário. Está presente no mobiliário, na arquitetura da casa e nos hábitos que, à medida do possível, são conservados.

Compras diferentes

´A gente ainda senta na calçada todas as noites para conversar como antigamente´, conta o pesquisador que lembra com saudade da época em que as compras eram feitas nas bodeguinhas, no mercado central ou com os ambulantes. Não se falava ainda em shopping centers, nem tampouco nos serviços ´delivery´. Assim como a violência com a qual, aos poucos, aprenderam a conviver.

´Lembro do tempo em que o leite era comprado na porta de casa e tinha o padeiro também´, completa dona Douvina, recordando a época em que, para casar, a moça tinha que ser prendada. ´Ela precisava saber costurar, cozinhar, já que não havia a facilidade dos serviços de entrega em domicílio, nem a moda pronta para vestir´, afirma, enquanto pedala sua máquina de costura Singer, do início do século passado.

Não havia essa troca imediata de informações como hoje, arremata, completando que os modelos eram copiados de revistas ou das divas do cinema, acrescenta, o marido. Douvina orgulha-se de ter vivido o fim do romantismo. Ela teve mais sorte do que as sonhadoras donzelas, protagonistas dos romances que povoaram os sonhos de juventude. Pois seu amor foi correspondido (e muito), brinca.

A morada próximo ao antigo centro histórico da cidade, que oferecia tudo — serviços, lazer, comércio — fez com que o casal dispensasse, até hoje, um dos principais símbolos da modernidade: o automóvel. ´Nunca precisei de carro´, orgulha-se o musicólogo, cuja casa mais parece um museu dada à quantidade de objetos que abriga.

Discos, fitas, fotografias, livros e outros objetos compõem o vasto acervo do pesquisador, dispostos nos diversos cômodos da casa onde nasceu Christiano Câmara, em 1935. Até hoje a casa continua do mesmo jeito. Sem muros altos, forro e o piso de alguns cômodos ainda de mosaico decorado.

O pesquisador não esconde a saudade do tempo em que freqüentava as sessões de cinema do Cine São Luiz, inaugurado na década de 1950. ´Era um desfile de moda´, afirma dona Douvina, fazendo alusão às roupas e aos acessórios exibidos pelo público.

O uso do paletó era obrigatório para os homens. No fim das sessões, uma prosa no banco da Praça do Ferreira, construída em 1842 para substituir a Praça da Carolina. Depois, o casal caminhava, de madrugada, até em casa. ´Não havia preocupação com a bolsa e a gente usava jóia e relógio sem medo´, conta dona Douvina.

Costumes diferentes

Distante da chamada sociedade da informação, o rádio era a principal influência, considerado o ´teatro da mente´. Ele ´não interferia na geografia sentimental, como acontece hoje com a televisão, que massifica, domina´, critica. Para o pesquisador é preciso diferenciar influência de dominação. ´O rádio dava apenas a sugestão´, opina.

A vida na Fortaleza do início do século XX era tão mais calma, recorda, o pesquisador, apaixonado por cinema e música. As poucas opções de lazer ficavam restritas, basicamente, às sessões dominicais de cinema. Além das visitas ao Centro para olhar vitrines, as conversas tanto na porta da rua quanto nas casas dos amigos ou mesmo nos bancos das praças.

Mas o assunto mesmo preferido por Christiano Câmara é Fortaleza antiga. Do tempo em que não existiam tantos automóveis pelas ruas e nem os terminais de integração como hoje. ´Alcancei o tempo dos bondes puxados por burros e depois os movido a eletricidade´, conta. Não esconde o orgulho de ter participado da vida de Fortaleza quando ela não conhecia a modernidade.

Christiano relembra de personagens que não existem mais. Era o caso do ´botador de lenha´, uma vez que o gás de cozinha apareceu na década de 1960. Assim como os vendedores de carnes de porta em porta. A figura do leiteiro tornou-se folclórica, acusado de colocar água no produto.

Dona Douvina conta que toda dona-de-casa tinha, obrigatoriamente, um livro de receitas, já que o hábito de sair para comer fora de casa não fazia parte dos costumes da população de Fortaleza das primeiras décadas do século passado.

A perfumaria Eva, onde as pessoas compravam perfumes a granel, vem à lembrança do pesquisador. Dona Douvina completa, lembrando que o rouge era o papel de seda. Os homens também seguiam a moda dos astros de cinema e caprichavam na brilhantina, observa Christiano Câmara.

Iracema Sales - Diario do Nordeste
13/04/08

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